Segunda-feira, 02 de dezembro de 2024
Por Redação Rádio Caiçara | 6 de agosto de 2023
Em rara unanimidade, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram fechar definitivamente a porta para que assassinos de mulheres fiquem impunes, amparados na tese descabida da “legítima defesa da honra”. É um espanto que, por mais anacrônica que seja, ela ainda sensibilizasse tribunais. Não mais. Pela decisão do STF, o argumento não poderá ser usado nem nas investigações nem na fase processual. A Corte o considerou inconstitucional, por contrariar os princípios de igualdade de gênero, dignidade humana e proteção à vida. Num País em que os feminicídios se tornaram uma epidemia, a decisão de enterrar esse entulho jurídico não poderia ser mais oportuna.
O julgamento, motivado por ação do PDT, confirmou outra decisão da Corte de 2021, quando o plenário, também por unanimidade, corroborou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli contra a “legítima defesa da honra”. Toffoli considerou o argumento “desumano e cruel” e disse que contribuía para naturalizar a violência contra a mulher, ao “imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes e lesões”.
Na última semana, ao julgar o mérito da ação, a presidente do STF, Rosa Weber, ressaltou o caráter anacrônico e injusto da tese: “Simplesmente não há espaço, no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para restauração dos costumes medievais e desumanos do passado”.
A despeito de sobreviver por tanto tempo, a tese sempre foi absurda. Só encontrou terreno fértil numa sociedade machista. O Código Penal estabelece que “a legítima defesa pode ser empregada para repelir injusta agressão, atual ou iminente a direito seu ou de outrem”. Nada a ver com assassinos que cometem crimes torpes, depois recorrem a interpretações estapafúrdias da lei para escapar da punição.
O caso mais conhecido em que o argumento foi usado ocorreu em dezembro de 1976, numa casa de praia de Búzios. O empresário Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, matou a namorada, a socialite Ângela Diniz, com quatro tiros no rosto, em meio a discussões em que ela pedia o fim do relacionamento. Defendido pelo criminalista Evandro Lins e Silva, Doca foi condenado a apenas dois anos de prisão, tendo direito à suspensão condicional da pena, sob alegação de “legítima defesa da honra”. O desfecho causou indignação. Somente num julgamento posterior, ele foi condenado a 15 anos de prisão. O caso foi lembrado pela ministra Cármen Lúcia.
Impressiona como, meio século depois, a tragédia se repete de forma frequente, sob o mesmo roteiro perverso, apenas com outros nomes e outros cenários. Pelos números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.437 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil em 2022, aumento de 6,7% em relação a 2021. Quatro são mortas a cada dia. As tentativas de feminicídio — não menos trágicas —, somaram 2.563, 17,5% acima do ano anterior.
Não se pode minimizar tal ignomínia. A decisão do STF de enterrar a “legítima defesa da honra” é um passo fundamental para fazer criminosos pagar por seus atos, sem se beneficiar de teses jurídicas descabidas. Mas é só o primeiro. O País tem de avançar muito no combate à violência contra a mulher. Além de punir culpados, é preciso tentar impedir que os crimes aconteçam. A contribuição da Justiça para isso também é essencial.
No Ar: Show da Tarde